Paredes imperfeitas
Te conto um conto #12
(Se preferir ouvir o texto, só rolar até o final da página pra encontrar a minha narração!)
As paredes revestidas de azulejos portugueses adornados por alegres motivos florais azuis e amarelos são perfeitas! Perfeitas! Tem só uma ou outra partezinha que precisa ser restaurada... Coisa pouca, umas fissuras na pedra, bem pequenas. Tenho certeza que isso tem solução. É meio esquisito... Tipo essa, olha, é só um cantinho, mas tem algo avermelhado por baixo... E parece que sai um cheiro estranho daqui. Deixa eu sentir melhor. É um cheio de carne. Como pode uma coisa dessas? Vou descascar essa parte, esse azulejo deve estar comprometido. Ele sai facinho, veja, é só puxar. Tá tudo tomado dessa carne. É meio pegajoso, meio vivo, meio morto. Agora só vejo carne à minha volta. Um palácio de carne, com uns furinhos azuis e amarelos lá longe. Alguém se aproxima. Oi! Oi, eu acho que tô perdida aqui! A figura — Ele? Ela? — chega cada vez mais perto, veste uma capa de chuva preta de capuz muito longo que esconde seu rosto, numa mão duas bisnagas de tinta, uma azul, outra amarela, na outra um facão. Escolhe um dedo, ela diz, um dedo?, se preferir eu escolho, e corta meu polegar direito sem nenhum outro aviso, o susto me faz cair no chão, ela se afasta, usa meu dedo como pincel, começa a passar tinta azul num buraquinho da parede, depois volta, quanto tempo depois? Dessa vez não me dá opção, aproxima o facão da minha coxa, um bife, ela diz, o corte não é tão limpo, ela tem que serrilhar um pouco, fico caída, ela se afasta, satisfeita, por enquanto, o córrego de sangue faz um fio que nos conecta, eu e ela, essa figura de capa e faca que cimenta meu bife nas paredes, e logo — logo? — ela volta, agora a língua, a língua?, a língua, mas aí eu não vou mais poder falar. É, ela diz.
Esse breve e sangrento conto foi produzido a partir de um exercício da Esc. Escola de Escrita
O mote era o seguinte: Imagine que está dentro de um quadro.
A obra que selecionei foi essa:
Língua com padrão sinuoso, de Adriana Varejão, fotografada por mim na exposição Varejão: Suturas, fissuras, ruínas, na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2022.
Já conheciam essa Língua?
Essa edição da newsletter tem novidade! Narrei o texto, agora vocês podem me ouvir! Vou tentar fazer isso com todos os próximos e também com alguns mais antigos.


